Para acabar de uma vez para sempre com a Veneza do Atlântico

Para acabar de uma vez para sempre com a Veneza do Atlântico
“Lisboa, a Veneza do Atlântico?” é título fancy mas excessivo e inadequado, que Paulo Trigo Pereira publica no Observador em meados de Dezembro de 2016 (1)
O autor é catedrático em escola de referência, personalidade pública que inspira respeito e deputado pelo PS. A sua opinião sobre Lisboa tem influência política e social, pelo que exige escrutínio neste e em futuros posts.

No presente post

-apresentamos a diferença entre os territórios da Zona crítica de Lisboa e Città Storica di Venezia e a parecença da evolução da população residente nos dois espaços,

-esmiuçamos factos, opiniões e erros de um artigo de opinião de Paulo Trigo Pereira.


O post é apoiado pelo documento “Informação útil a quem opina sobre turismo e Lisboa” (aqui). Recomendamos leitura dos Princípios Gerais do blogue (http://sergiopalmabrito.blogspot.pt/p/apresentacao.html).



1.Zona crítica de despovoamento de Lisboa e Città storica di Venezia

*A comparação sem sentido e a que faz sentido
Città metropolitana di Venezia, Comune di Venezia e Città storica di Venezia são descritas no capítulo 8 do documento de apoio. Mostramos não podermos comparar as aglomerações urbanas e as cidades, e fazer sentido comparar Zona crítica de despovoamento de Lisboa com a Città storica di Venezia.

*Zona crítica de Lisboa e Città Storica di Venezia – o território
No post base sobre Território e turismo em Lisboa (aqui) apresentamos o território da Zona crítica de Lisboa.

A figura 1 mostra como a Città Storica é uma ilha com menos de 9 km2 (Lisboa ocupa 83.74 km2) ligada ao Continente por via rápida e caminho-de-ferro.

Figura 1 – Città storica di Venezia


Fonte: Ver Nota (2).

*Zona crítica de Lisboa e Città Storica di Venezia – a diferença
O quadro 1 compara superfície e população Zona crítica de Lisboa e da Citá Storica di Venezia. Apesar da diferença na superfície e população, podemos comparar os dois espaços.



Orografia, tecido urbano e envolvente marcam diferença a ter sempre em conta. Com efeito, a Città Storica

-é plana e a laguna define limites numa envolvente aquática, que não podem ser comparadas com as colinas de Lisboa e o elemento paisagístico que o estuário do Tejo representa para as microcentralidades turísticas referidas antes,

-ocupa 7,98 km2, espartilhados pela laguna diferente dos 4,88 km2 da Zona crítica, um espaço aberto sobre o Tejo e envolvido pela Urbe Histórica que o prolonga,

-tem tecido urbano cerrado, com muitas casas sem vistas e sem espaços que o abram à população, com apenas a Praça de S. Marcos que é pouco mais de um terço do Terreiro do Paço, enquanto Lisboa é o que sabemos e é muito diferente.

*Meio século a ter em conta
Na Zona crítica de despovoamento de Lisboa, os efeitos verdadeiramente significativos da procura/oferta de turismo só se manifestam a partir de 2011. Aí encontram o resultado da queda sustentada de população entre 1960/2011: um espaço despovoado, com população envelhecida e alojamentos vagos ou de segunda residência, e com casas velhas e em má condição. Este meio século de despovoamento não é consequência do turismo, antes cria a urbe que vai acolher os turistas na origem da reabilitação urbana em curso e de tensões com população residente.

Durante o mesmo período, o despovoamento da Citá Storica di Venezia coincide com crescimento do turismo e é certamente influenciado, para o mal e para o bem, por este.

São duas dinâmicas que diferem em factor determinante: o papel do turismo no passado e nos próximos anos. Paulo Trigo Pereira erra ao ignorar esta diferença estrutural.

*Zona crítica Lisboa e Citá Storica Venezia: quantificar a população
Os gráficos 1 a 3 comparam a evolução 1960/2011 da população da Zona crítica de despovoamento de Lisboa e da Citá Storica de Veneza. Vale a pena pesquisar as causas da evolução da população nas duas urbes seguir o mesmo padrão, apesar das diferenças da história e geografia:

-a Zona crítica começa com população superior à da Città Storica (164 milhares de habitantes e 145 milhares, respectivamente), mas acaba com população inferior (44 milhares de habitantes contra 59 milhares),

-a evolução em índice, a partir de 100 em 1960, ilustra melhor esta evolução: em 2011, a Zona crítica está no índice 27 e a Città Storica em 41,

-ambas urbes apresentam grande queda de população na década de 1960, menor queda na de 1970, queda acentuada nas décadas de 1980 e 1990 e, por fim, expectável menor queda na de 2000.

Há outra realidade inesperada e a exigir explicação que exige mais pesquiza:
-a população residente desce mais na Zona crítica sem turismo e com rendas bloqueadas, do que na Città Storica com turismo ao longo dos anos.

Gráfico 1 – População Zona crítica Lisboa e Citá Storica (milhares habitantes)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamento da População, e https://www.comune.venezia.it/archivio/4055

Gráfico 2 – População Zona crítica Lisboa e Citá Storica (índice 1960=100)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamento da População, e https://www.comune.venezia.it/archivio/4055

O gráfico 3 é o que melhor ilustra a parecença na evolução da população residente na Zona crítica e na Cittá Storica, cuja origem e contexto são diferentes:

-a Città Storica tem longa história nas relações entre a Europa e o Oriente próximo e está nas franjas do pentágono europeu,

-a Zona crítica é o instrumento que criámos para analisar a relação entre território e turismo no que é o coração da Urbe Histórica de Lisboa, onde os horizontes do século XVI já são apenas história.

Gráfico 3 – População Zona crítica Lisboa e Citá Storica (variação decenal)



Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamento da População, e https://www.comune.venezia.it/archivio/4055


2.Factos, opinião e erros de Paulo Trigo Pereira

*Factos …
O artigo de PTP começa com factos:

-“A cidade histórica de Veneza tinha cerca de 200.000 habitantes em 1980 e apenas menos de 55.000 em 2016.
Lisboa em 1981 tinha 801 mil residentes, e em 2015 estima-se que sejam perto de 500 mil.”.

Aqui há um erro e PTP não pode errar em factos de base: a população da cidade histórica de Veneza diminui de 95k habitantes em 1980, e não 200k, para 55k em 2015. O erro agrava a descida de população da Città Storica e induz o leitor em erro, mas não é o que verdadeiramente nos interessa.

*… e opinião …
O autor continua:

-“Lisboa está mais bonita (melhor ficará quando as obras acabarem) e mais vibrante.

Mas queremos o centro histórico e as zonas mais nobres de Lisboa como um museu parcialmente deserto de residentes (nacionais ou internacionais) e em grande parte habitado e frequentado apenas por turistas e visitantes ocasionais?

Depois de um profundo processo de suburbanização endógeno das últimas décadas, assistimos agora a dois outros fenómenos simultâneos:

-o da gentrificação e do parcial despovoamento de residentes de certos bairros da cidade (Bairro Alto, Castelo, Alfama, etc.) e

-da sua substituição quer por crescente oferta turística de diferente tipo (hotéis, hostels, alojamento local), quer por propriedades adquiridas por residentes não habituais de classes altas.”.

*… erros
O texto remanescente do artigo de PTP, dá a entender que “agora” é ‘depois de 2011’. Neste quadro temporal, Paulo Trigo Pereira comete dois erros:

-no post sobre População residente e turismo em Lisboa 1960/2011, mostramos não ser possível falar do período posterior a 2011 sem ter em consideração o meio século anterior,

-não pode ser tão assertivo sobre “gentrificação” e “substituição” sem quantificar minimamente estes processos.

O terceiro e mais importante erro do autor consiste em comparar Lisboa e Veneza sem ter feito a pesquiza que põe em evidência factos importantes:

-a evolução da população residente entre 1960/2011 na Zona crítica e Città Storica segue o mesmo padrão, apesar de diferenças entre Lisboa e Veneza,

-a população residente desce mais na Zona crítica sem turismo e com rendas bloqueadas, do que na Città Storica com turismo ao longo dos anos.

A Bem da Nação

Lisboa 23 de Fevereiro de 2017

Sérgio Palma Brito

Notas

(1)Ver 2016.12.13 Observador, Paulo Trigo Pereira Lisboa, a Veneza do Atlântico?

(2)Ver
https://www.google.pt/maps/place/Veneza,+It%C3%A1lia/@45.4053211,12.1015609,10z/data=!3m1!4b1!4m5!3m4!1s0x477eb1daf1d63d89:0x7ba3c6f0bd92102f!8m2!3d45.4408474!4d12.3155151

População residente e turismo em Lisboa 1960/2011

Entre 1960/2011, Lisboa perde 254 mil habitantes (31,7%), o que parece muito, sobretudo quando a população de Barcelona cresce 45 mil habitantes (2,9%). Acontece que

-no mesmo período, o Centro Histórico perde 193 mil habitantes (63,5%), a Zona crítica de despovoamento perde 120 mil habitantes (73,2%) e a freguesia do Castelo perde 1.535 habitantes (81.2%).

-na realidade, só nos vinte anos entre 1981/2001, Lisboa perde 243 mil habitantes, porque entre 1961/81 a população ganha 6 mil habitantes.

Vamos esmiuçar três pontos:

-Lisboa perde de população na diversidade de evoluções de diferentes freguesias antigas,

-padrão de perda de população no Centro Histórico e Zona crítica diverge do seguido pela população de Lisboa,

-População de Lisboa estimada pelo INE e comparada com a do Algarve.


Este post é apoiado pelo documento “Informação útil a quem opina sobre turismo e Lisboa” (aqui). Recomendamos leitura dos Princípios Gerais do blogue (http://sergiopalmabrito.blogspot.pt/p/apresentacao.html).


1.Lisboa – perda de população na diversidade de evoluções

*População de Lisboa entre 1960/2011
Na evolução da população de Lisboa entre 1960/2011 (gráfico 1), há três períodos. Entre 1960/1981 a população de Lisboa aumenta ligeiramente, com perda de 33k residentes na década de sessenta (saldo de emigração/imigração) e ganho de 39k na de setenta (regresso dos portugueses das colónias?),

Nos vinte anos entre 1981/2001 Lisboa perde 243k habitantes, na realidade a perda que marca o meio século em apreço. Nos dez anos seguintes (2001/11) Lisboa apenas perde apenas 17k habitantes.

Gráfico 1 – População residente em Lisboa entre 1960/2011 (milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação

*Entre 1960/2011 – ganhos e perdas de população
O gráfico 2 ilustra a variação entre 1960/2011 da população das freguesias de Lisboa que mais ganham ou perdem população. Um facto salta à vista:

-freguesias da Zona crítica de despovoamento perdem população e freguesias da periferia do concelho ganham população.

Gráfico 2 – Variação da população de freguesias de Lisboa 1960/2011


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação

*Freguesias que ganham e perdem população
O gráfico 3 ilustra a evolução da variação decenal da população de Lisboa (a azul), das freguesias que ganham população (grenat) e das que perdem população (amarelo torrado).

Gráfico 3 – Evolução decenal da população Lisboa entre 1960/11 (milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação

Deste gráfico destacamos,

-a década de 1960, com freguesias a perderem 147 mil habitantes e outras a ganhar 105 mil – serão lisboetas a emigrar para o estrangeiro e provincianos a migrar para a capital?

-na evolução na década de 1970 a explicação da divegência pode residir na instalação dos portugueses que fogem das colónias,

-na evolução das três décadas seguintes domina a perda de população, a ritmo naturalmente decrescente, no que parece ser “profundo processo de suburbanização endógeno das últimas décadas” de que fala Paulo Trigo Pereira (aqui), mas certamente não por efeito do turismo.

O leitor deve preocupar-se com uma explicação séria da evolução que o gráfico ilustra. As nossas sugestões são o que são, talvez mais sólidas do que muitos dos palpites que ouve e lê, mas ainda assim sugestões.  

*Freguesias na variação entre 1981/2001 e 2001/11
Consideramos (gráfico 4) a evolução da população nas freguesias em que a população mais diminui durante os vinte anos de queda brusca (1981/2001) e mostramos o que acontece nos dez anos de quase estabilização (2001/11).

Gráfico 4 – Freguesias na variação entre 1981/01 e 2001/11 (habitantes)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação

Do destacamos:

-quase todas as freguesias que mais população perderam nos vinte anos anteriores estabilizam a perda de população entre 2001/11, com excepção de Santo Condestável, Ajuda, S. João, Benfica e S. João de Brito que perdem mais de 1.000k habitantes cada uma,

-Sta. Maria dos Olivais que passa de uma perda de -15.531k habitantes a um ganho de 4.626 habitantes,

-duas freguesias com evolução positiva no século XXI e forte perda nos vinte anos antes: S. Jorge de Arroios e S. Sebastião da Pedreira que são freguesias contíguas, conhecidas como área de residência de imigrantes.


2.Perda de população: Centro Histórico e Zona crítica divergem

O gráfico 5 é sobretudo informativo, mas dá uma primeira imagem da diferença entre o padrão de evolução da população da cidade e o da evolução da população no Centro Histórico e Zona crítica:

-perda de população no Centro Histórico e Zona crítica que é muito mais importante do que na Cidade,

-diferença acentuada na variação decenal dos anos de 1960 e 1970.

Gráfico 5 – População da Cidade, Centro Histórico e Zona Crítica (habitantes)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação

A variação da população em índice (gráfico 6) é mais elucidativa porque atenua o efeito da diferença de escala no gráfico em quantidade. Assim,

-nas décadas de 1960 e 1970, Lisboa ganha um ponto base, mas o Centro Histórico perde 28 e a Zona crítica 36 – é fundamental conhecer as dinâmicas que explicam esta diferença,

-entre 1981/2001, Lisboa perde 33 pontos base, mas o Centro Histórico e Zona crítica, apesar da perda dos vinte a anos anteriores, perdem 31 e e 32 pontos base, respectivamente,

-na década de 2000/11, a população de Lisboa perde dois pontos base, mas as do Centro Histórico e Zona crítica perdem cinco.

Gráfico 6 – População da Cidade, Centro Histórico e Zona Crítica (1960=100)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação

O gráfico 7 compara, em quantidade, a variação decenal da população dos três territórios em causa e reforça as observações anteriores:

-a grande diferença no padrão de evolução da população residente da Cidade por um lado, e residente no Centro Histórico e Zona crítica por outro, ocorre durante as décadas de sessenta.

Gráfico 7 – Variação decenal população da Cidade, Centro Histórico e Zona Crítica (milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação


3.População de Lisboa: INE e Algarve

*Evolução anual população de Lisboa e modelos estatísticos do INE
A quantificação pelo INE da evolução anual da população de Lisboa segundo os Anuários da Região de Lisboa (gráfico 8) levanta questões:

-a queda de população entre 2005/10 é questionada pelo Recenseamento de 2011 e parece resultar de modelo estatístico desligado da realidade,

-a evolução entre 2012/15 parece resultar da aplicação do mesmo modelo e constatamos que, com a excepção de 2013, os números anuais não corrigidos coincidem com os corrigidos … enquanto esperam pelo Recenseamento de 2021 que os corrigirá.

Gráfico 2.8 – População de Lisboa em valores anuais não corrigidos (milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE - Anuário Estatístico da Região de Lisboa

O gráfico 9 com valores anuais revistos da população de Lisboa com base nos recenseamentos de 1991, 2001 e 2011 e correcção dos resultados do modelo estatístico com o Recenseamento de 2011.

No quadro do presente documento, a evolução da população de Lisboa pode interessar para termos uma noção da influência do crescimento da economia do turismo. Em nossa opinião este exercício não faz grande sentido por

-a escala da população de Lisboa não permitir identificar a influência do turismo no crescimento da população da Cidade.

-inquérito junto de quem trabalha em actividades turísticas poderá dar uma ideia da influência directa do turismo na população da Cidade – este esforço parece possível e susceptível de dar informação útil.

Gráfico 9 – População de Lisboa valores anuais corrigidos (milhares)


Fonte: Elaboração própria com base em INE

*População de Lisboa e turismo – o precedente do Algarve
A comparação da evolução da população residente no Algarve e em Lisboa (gráfico 10) mostra que

-no Algarve o desenvolvimento do turismo inverte um processo de despovoamento que teria sido fatal para a Região,

-em Lisboa, o turismo tem menor escala e muito menor componente de promoção imobiliária, mas retém e atrai população – a questão é saber quanta e onde se aloja.

Gráfico 10 – População residente em Lisboa e Algarve (1950=100)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da Habitação

Sobre o Algarve, citamos Território e turismo no Algarve:

-“Se esta região estivesse unicamente dependente da sua dinâmica natural, tenderia a perder progressivamente população, como consequência do acentuado declínio da sua fecundidade. Até ao ano 2000 perderia cerca de 90.000 habitantes”*.

Não perdeu 90.000 habitantes no que passaria a ser um Nordeste transmontano com praias. Ganhou 183.000, para atingir 451.000 habitantes em 2011.


A Bem da Nação

Lisboa 23 de Fevereiro de 2017

Sérgio Palma Brito

*J. Manuel Nazareth, Unidade e Diversidade da Demografia Portuguesa no Final do Século XX, Portugal: os próximos 20 anos, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa 1988.


Turismo no território de Lisboa – a base de todas as opiniões

As actividades da indústria do turismo em Lisboa têm limitada implantação espacial nos 87.74 km2 da cidade. Nada de original nem de extraordinário. Turismo e outro espaço urbano ocupam cerca de 200 km2 nos 5.000 km2 do Algarve e encontramos o mesmo padrão em outras cidades do mundo.

Em nossa opinião, toda e qualquer opinião sobre o turismo em Lisboa deve assentar em base territorial explícita, de preferência com definição formal. Na maior parte dos casos, ignorar esta regra desqualifica a opinião.   


Explicaremos isto e muito mais na série de posts de que este é o primeiro. A base analítica dos posts é o documento “Informação útil a quem opina sobre turismo e Lisboa” (aqui), Princípios Gerais do blogue, de leitura que recomendamos (http://sergiopalmabrito.blogspot.pt/p/apresentacao.html).


1.Lisboa

*Concelho de Lisboa
Lisboa tem 87.74 km2 de superfície. Em 2011 tem 548 mil habitantes, 238 mil alojamentos de residência habitual, 35 mil de residência secundária e 50 mil vagos. Um olhar sobre o mapa da Cidade com ‘novas freguesias’ dá-nos primeira ideia de quão vasta é a área em que não vislumbramos turistas e de quão limitada é a que mais directamente os recebe (figura 1).

Figura 1 – Cidade de Lisboa



*Urbe Histórica de Lisboa
Sem museu, monumento ou atracção que a afirmem como destino turístico, a diferença da oferta de turismo de Lisboa reside no que nós façamos na extensa faixa de Urbe Histórica, que se estende sobre colinas e ao longo do Tejo, nos cerca de doze quilómetros de Belém ao Beato.

A Urbe Histórica tem limites difusos, mas é parte da percepção que os turistas têm de Lisboa, antes de se familiarizarem com nomes como Alfama, Castelo, Bairro Alto e por aí adiante (1).

Muito do futuro do turismo na cidade de Lisboa depende da nossa capacidade em intervir a Urbe Histórica, de modo a

-conciliar as exigências do desenvolvimento da industria do turismo com a salvaguarda dos valores da cidade, da sua gente e do seu património,

-identificar os pontos de tensão neste conciliar de exigências, para intervir localmente no âmbito de estratégia consensualizada [ver ponto2].

A grande maioria de críticas ao turismo em Lisboa e as respostas que exigem têm a ver com Urbe Histórica. Para as analisar, temos de considerar espaços formais: Centro Histórico e Zona crítica de despovoamento de Lisboa

*Centro Histórico de Lisboa
No seio da Urbe Histórica, o Centro Histórico de Lisboa ocupa 16,15km2 e tem 110.792 habitantes em 2011. Tem definição administrativa e ocupa seis das ‘novas freguesias’ (2).

A experiência mostra que o Centro Histórico não é significativo para a relação entre território e turismo na Urbe Histórica de Lisboa:

-inclui freguesias antigas cujo território não é sede de problemas relevantes entre turismo e residentes,

-não inclui toda a área de Belém e Ajuda,

-a ATL acaba de definir no seu seio três novas microcentralidades turísticas, abandonando a referência genérica a Centro Histórico. [ver ponto2].

*Zona crítica de despovoamento – definição
Somos obrigados a definir um espaço formal que nos permita analisar as dinâmicas de despovoamento e de desenvolvimento do turismo no seio da Urbe Histórica de Lisboa e comparar com zonas similares de outras cidades. Esta é a origem da Zona crítica de despovoamento de Lisboa, formada pelo conjunto das vinte e uma freguesias nas quais a população residente diminui mais de 65% entre 1960/2011 (gráfico 1) (3). Esta zona

-é o coração da urbe histórica, ocupa 4,88Km2 e tem 44.482 habitantes em 2011, ou seja 5,9% da área de Lisboa e 8,1% da população,

-é definida a partir de critério estatístico e administrativo, mas ocupa um espaço urbano coerente.

Gráfico 1 – Zona crítica - variação da população residente 1960/2011 (%)


Fonte: Elaboração própria com base em INE, Recenseamentos da População

Registamos que três freguesias perdem mais de 80% da população entre 1960/2015 e, arredondando a unidades, oito perdem 75% ou mais.

*Zona crítica de despovoamento no território da Cidade
A Zona crítica de despovoamento

-exclui freguesias do Centro Histórico de Lisboa: Santa Isabel e Santo Condestável (Campo de Ourique), Lapa e Prazeres (Estrela), Penha de França e S. João (Penha de França), Graça e Santa Engrácia (São Vicente)

-inclui freguesia fora do Centro Histórico: Pena (Arroios), Coração de Jesus e S. José (Santo António),

-inclui 18 freguesias do Centro Histórico: Castelo, Encarnação, Madalena, Mártires, Mercês, Sacramento, Sta. Catarina, Sta. Justa, Santiago, Sto. Estêvão, Santos-o-Velho, São Cristóvão e São Lourenço, São Miguel, São Nicolau, São Paulo, São Vicente de Fora, Sé e Socorro,

-forma um território contíguo e coerente, susceptível de ser individualizado (figura 2) – observação a ser feita no site https://www.viamichelin.pt/.

Figura 2 – Zona crítica de despovoamento Lisboa – 21 freguesias ‘antigas’


Fonte: Elaboração própria com base em https://www.viamichelin.pt/

*Zona crítica de despovoamento e debate sobre turismo em Lisboa
Partimos da observação e da estatística e acabamos por definir uma Zona que integra as freguesias de Sta. Maria Maior e Misericórdia, mais a de Santo António, esta com excepção da freguesia antiga de S. Mamede, na qual a população diminui ‘apenas’ 61% entre 1960/2011. 

A Zona crítica de despovoamento de Lisboa

-coincide grosso modo com o das três microcentralidades turísticas definidas pela ATL – Associação Turismo de Lisboa [ver ponto 2],

-concentra muita das actividades turísticas, nomeadamente pouco menos de 62.7% do total de apartamentos de Alojamento Local registados no RNAL em 31 Dezembro 2016 (gráficos 2 e 3),

-permite comparar a sua população com a da Città Storica de Veneza ou da Ciutat Vella de Barcelona, como veremos em posts futuros.

Gráfico 2 – Registos de apartamentos de AL em Lisboa por freguesia


Fonte: Elaboração própria com base em Registo Nacional do Alojamento Local (RNAL)

Gráfico 3 – Registos de apartamentos de AL no TOP6 freguesias percentagem


Fonte: Elaboração própria com base em Registo Nacional do Alojamento Local (RNAL)

Estamos perante exemplo da concentração de actividades turísticas em três freguesias que são nova realidade na governança do turismo em Lisboa.


2.Turismo no território de Lisboa

*Microcentralidades turísticas de Lisboa
O Plano Estratégico Para o Turismo da Região de Lisboa 2015/2019 (4) “revê as microcentralidades da cidade de Lisboa adequando-as à nova realidade”:

-separação do Centro Histórico em três novas microcentralidades: ‘Bairro Alto, Cais do Sodré e Santos’, ‘Baixa-Chiado’, ‘Alfama, Castelo e Mouraria’,

-criação de uma nova microcentralidade: Marquês de Pombal e Av. da Liberdade, reconhecendo a sua relevância como destino de shopping e de negócios;

-microcentralidades de Belém, Parque das Nações e Eixo Ribeirinho mantêm as actuais fronteiras (figura 3).

Figura 3 – Redefinição das microcentralidades do turismo em Lisboa


Fonte: Elaboração própria com base em Plano Estratégico Para o Turismo na Região de Lisboa

*Há turismo em Lisboa para além da Zona crítica despovoamento
Lisboa é cidade moderna e ligada ao Tejo. Outras microcentralidades turísticas destacam

-o Eixo Ribeirinho que acompanha e integra a Urbe Histórica, mas que vai mais para além, até ao Parque das Nações,

-Avenida da Liberdade que liga Urbe Histórica a um dos business districts,

-Belém, que inclui Ajuda, na Urbe Histórica,

-Parque das Nações em si e pelo Oceanário com mais de um milhão de visitas.

*Concentração de actividades turísticas e pontos de tensão
As actividades turísticas tendem a concentrar-se na cidade, em resultado do espírito gregário dos humanos, de aparente racionalidade económica (Bairro Alto), ou de localização de atracções (Belém).

A frente Tejo, Belém ou Praça do Comércio são zonas de concentração de turistas que, pela sua extensão e paisagem com o Tejo diferenciam positivamente Lisboa – não temos o equivalente do excesso de visitantes na praça de S. Marcos em Veneza.

Diferente é o caso de pontos de tensão entre turismo e residentes. Com mais de 1.7 milhões de visitantes e as ruelas na envolvente, o Castelo de S. Jorge é/será ponto de tensão. Ainda assim abaixo da Sagrada Família que, num quarteirão da malha urbana de Barcelona recebe mais de 3.7 milhões de visitas por ano.

Zonas de concentração de actividades turísticas e pontos de tensão entre turismo e residentes exigem gestão local integrada em modelo de desenvolvimento consensualizado.

3.Referências vagas ao turismo no território

*“Dez teses sobre o centro histórico de Lisboa”
O geógrafo João Seixas é professor auxiliar da Universidade Nova de Lisboa e foi coordenador da equipa para a Reforma Administrativa da Cidade. Na quinta tese das dez sobre “o centro histórico de Lisboa” e em artigo muito assertivo no Publico, refere o crescimento da população [sublinhados nossos]:

-“Desde 2008 que o centro histórico de Lisboa estava finalmente a recuperar da absurda doença a que havia sido sujeito durante décadas. Em população e em empresas.”, “confirmando que muitas famílias (das mais variadas classes sociais) se encontravam a ocupar, de novo, o centro urbano.”.

Depois,

-“instala-se, entretanto, uma mudança de forças que está a tornar a habitação muito mais cara e pressionada, e muito rapidamente. Desde 2013 que a cidade estará de novo a perder população estável e densidade residencial; a uma média de mais de 3500 eleitores/ano. A população escolar, após subir de 2008 a 2012, tem estado a diminuir de novo,” (5).

Em poucas linhas o autor refere centro histórico e cidade (duas áreas definidas mas bem diferentes) e centro urbano, área sem definição rigorosa. Esta mistura não permite a leitura rigorosa do texto.

A seguir o autor refere a perda de habitantes pela cidade desde 2013 e

-dá a ideia que esta alteração ao nível da Cidade resulta da dinâmica do turismo no centro histórico ou centro urbano, o que é um exagero,

-parece ignorar que a diminuição de população residente resulta erro do modelo estatístico do INE, como explicamos no post sobre População.

*“pressão que o turismo exerce nas cidades”
Voltamos a João Seixas, agora em declarações ao Expresso:

-“[João  Seixas] fez as contas e chegou à conclusão de que o rácio de turistas face ao número de residentes, um indicador para a pressão que o turismo exerce nas cidades, “é um dos maiores da Europa”: “Peguei nos dados de 2014: Barcelona teve 7,9 milhões de visitantes e uma estada média de 2,9 dias. Multiplique [dá 22,91]. Esta cidade tem 1,6 milhões de residentes. Dividindo, temos um rácio de 14,3. E Lisboa teve nesse ano 4,9 milhões de visitantes com uma estada média de 2,4, para 550 mil residentes. Dá um rácio de 21,4. E se fizermos estes cálculos apenas para os residentes das zonas mais turísticas e históricas, o rácio fica mais acentuado. É um ‘indicador sintético’, de análise, mas relevante.” (6).

O rácio utilizado por João Seixas não é o de turistas/residentes mas sim o de dormidas na hotelaria/residentes, mas não é isso que está em causa. Ser um ‘indicador sintético’ é, e em casos muito especiais dá indicação útil. Relevante, não é, porque é arcaísmo sem base científica e esgotado na década de 1980. Basta pensar na escala do espaço a que se aplica e na integração deste espaço no território.

Este ratio pode ser utilizado na concepção de resorts que combinem residência permanente e alojamento turístico, mas é tudo.

O ratio é de facto um indicador sintético, mas da impotência de cientistas que fazem uma abordagem superficial de dinâmica económica, social e urbana na formação da economia do turismo.

4.Nota final

Certamente por falha nossa, não conhecemos texto que formalize o conhecimento sobre o turismo na cidade a partir da observação e análise da realidade no terreno.

Zona crítica, áreas de concentração e pontos de tensão são noções que criámos a partir da observação do turismo em várias cidades do mundo e leitura de livros do período da geografia de Orlando Ribeiro. 


A Bem da Nação

Lisboa 23 Fevereiro 2017

Sérgio Palma Brito


Notas

(1)No branding de destinos turísticos, Simon Anholt utiliza o caso da caixa de chocolates. Num mercado em que apenas a marca Lisboa tem notoriedade, o destino é Lisboa. Quando Lisboa já é conhecida, as microcentralidades passam a poder ter identidade própria mas sempre ligada à de Lisboa.

(2)Estrela, Campo de Ourique, Misericórdia, Santa Maria Maior, Penha de França e São Vicente.

(3)Deixamos ao leitor a possibilidade de fixar o limite inferior da diminuição de população. Se for em 60%, e não 65%, aumenta a Zona crítica em mais oito freguesias.

(4)Ver Associação Turismo de Lisboa, Plano Estratégico Para o Turismo da Região de Lisboa 2015-2019, Lisboa 2014.

(5)Ver 2016.08.08 Publico, Dez teses sobre o centro histórico de Lisboa

(6)Ver 2016.12.23 Expresso, O novo fado de Lisboa