1.A morte de Elidérico Viegas provocou-me um choque
emocional sobre o qual não me alongarei, mas que remonta a 1984, quando vim
para o Algarve, e se intensifica com os anos de ouro da AHETA, e chega aos dias
de hoje.
Tivemos atos e baixos e, por fim, algum distanciamento, mas
quando se é amigo, é-se amigo.
Não escreverei generalidades sobre EV, antes falarei sobre enorme
defensor da economia do turismo do Algarve como empresário e líder associativo
empresarial.
Passei a lidar com o EV a partir de 1984, quando dirigia o
aldeamento Vila Nova e era o homem de confiança da Thomson, então o maior
operador inglês.
O Algarve era, de muito longe, a mais importante região da
economia do turismo do País, quando Lisboa ainda fazia saldos no mês de agosto
e o Porto nem sonhava vir a existir como destino turístico.
Apesar disso, o Algarve era ignorado ou hostilizado pelas políticas
publicas de turismo no País e na Região, algo que nenhum investigador se
dedicou ainda a investigar.
2.Neste post conto como fiz parte de um grupo de empresários
e gestores de empresas de turismo e imobiliária turística do Algarve que
animaram uma associação empresaria regional genuína e independente do poder
político… até darem com os burrinhos na água.
Falo de um processo associativo que EV liderou e falo para
guardar memória que não se pode perder e importa que as novas gerações
conheçam.
Falo na primeira pessoa e sobre como vivi os acontecimentos
em que participei. Esta opção não pode ser interpretada como sede de
protagonismo e ainda menos de me valorizar para ocupar o papel que
incontestavelmente foi o de EV.
3.Acompanhei a fase em que EV era o responsável da Associação
de Hotéis de Portugal no Algarve, já com o propósito firme de identificar o
turismo da Região no contexto nacional.
No Algarve, o grande lutador que também foi Joaquim Manuel
Cabrita Neto que começava a eternizar-se na presidência da AHISA. Esta associação
representava os interesses dos Empresários da Hotelaria, Restauração
e Bebidas do Algarve, um modelo que vinha de antes do 25 de Abril e não era
adequado à economia do turismo da Região.
A formação da AHP (Associação do Hotéis de Portugal) foi a
alternativa hoteleira a distanciar-se da Restauração e Bebidas, origem algo
elitista, mas realista. Um hotel representa mais capital, investimento, risco
e… prestígio social.
Stefano Saviotti, empresário dos Hotéis D. Pedro era a
figura dominante na AHP. O convívio entre os dois era impossível, o que não
servia a Região. Lisboa era Lisboa e EV era apenas o empresário de um
aldeamento na Oura. Como se diz em francês, ‘ça faisait peuple’.
EV lutava só, em alternativa a Stefano Saviotti e sobretudo
a JMCN, no esplendor dos anos de gloria do cavaquismo.
Não foi fácil.
4.No estertor do cavaquismo, EV convida-me a participar na
fundação do que seria a AHETA.
Aceito com duas
condições:
-a AHETA reconhece a imobiliária turística como parte
integrante da economia da região e mobiliza, entre outros, Vale do Lobo (Sander
van Gelder), Quinta do Lago (Domingos Silva), Vilamoura (coronel Silva Sebastião)
e Garvetur (Reinaldo Teixeira) e hoteleiros como Hélder Pires e José Carlos
Leandro,
-a AHETA tem um programa que divulga e depois, bom é o
governo que o apoia e mau o que não o apoia, não é a AHETA que depende do
governo, é este que se define perante as propostas da AHETA.
EV aceita e começo o trabalho de redigir os documentos
programáticos e comunicados da AHETA, em diálogo permanente com EV.
Em opinião atempadamente publicada no Turismohotel, anunciei
não ser candidato a secretário de Estado de António Gutteres, ganhasse ele as
eleições.
Esta independência da AHETA em relação ao poder político foi
crucial e… durou enquanto durou.
5.No primeiro governo de António Guterres, a escolha de
Ismael Ribeiro da Cunha para secretário de Estado do Turismo vai pôr-nos à
prova. A critica à escolha é quase unânime, mas baseada em factos pessoais. Facto
certo era IRC ter escrito artigos arcaicos sobre o turismo do Algarve.
No gabinete do futuro primeiro-ministro somos (EV, Domingos
Silva e eu) recebidos por Pina Moura, uma estrela em ascensão. A pergunta é
simples:
-IRC fez estas afirmações, é esta a política do governo?
Pina Moura responde com rotundo não, abre a porta a contactos
futuros e, nos apertos de mão finais, diz-nos
-Parabéns! Têm chegado cá muitas críticas, mas a vossa é a
única política e não pessoal.
Antes, tinha sabido da escolha de IRC por um camarada bem
informado. Limitei-me a dizer “Em menos de três meses está na capa do
Independente”. Foram três semanas.
6.Sem eu saber, havia no gabinete do primeiro-ministro um
assessor que me conhecia, respeitava e concordava com as minhas posições. Sentimos
abertura e passámos a enviar os nossos documentos para o gabinete, que
agradecia.
Aquando de uma grande cerimónia em Vilamoura, o
administrador da Lusotur Luis Correia da Silva, telefona-me para eu ser orador.
Recuso por ir de férias para a India. No dia seguinte, LCS telefona ‘Você deve
ter mel. O gabinete insiste em si’. E eu insisti em recusar.
Este detalhe quase queirosiano ilustra as portas que a AHETA
abria.
Passámos a enviar para o Gabinete do PM todos os documentos
da AHETA e, a cada vez, um ofício agradecia. Isto vai criar problemas com um
secretário de Estado que queria bloquear esta via de afirmação da AHETA.
7.A AHETA não esteve na criação da Confederação do Turismo
de Portugal que EV sempre a olhou com desconfiança… por não dar ao Algarve o
destaque que ele queria.
No embrião de CTP, eu representava ativamente a associação
das empresas de timeshare (ANITHAP) e, subliminarmente, o Algarve, com ligação
permanente a EV.
Recordo o final de uma reunião em que tudo parecia perdido.
Fiquei na sala só com o Atílio Forte e selámos com aperto de mão o acordo para
salvar a CTP.
Não exagero. Se nos tivéssemos separado em conflito, a CTP não
teria sido criada e o processo dificilmente retomado.
No segundo mandato de Atílio Forte eu já representava a
AHETA, mas EV mantinha o distanciamento.
8.No final do Cavaquismo, o governo aprova um decreto-lei
sobre o alojamento hoteleiro que era gravoso para a oferta de turismo do
Algarve.
Vou falar com o deputado Luis Filipe Madeira, um dos mais
fortes e pertinentes arautos que o Algarve teve em Lisboa, e acordamos que o PS
pediria a ratificação parlamentar do decreto-lei.
Na AHETA, Hélder Pires assegurava contactos frequentes com LFM,
o que ajudou.
Há uma reunião no Parlamento presidida pelo LFM, com o
ministro Augusto Mateus, Hélder Pires, Eurico Correia do Algarve e Asdrúbal
Calisto, o advogado das ‘posições de Lisboa’. O tom é o de apoiar a posição da
AHETA
Eu fico de falar com o Albano Freire Nunes, então membro
influente do Comité Central do PCP, colega na direção da AEIST expulsa em 1964
e camarada no PCP da clandestinidade. Explico a situação e… o PCP abstém-se.
As forças dominantes na CTP ficam furiosas com a AHETA.
A direção da CTP era presidida pelo ‘velho’, com muito
respeito e amizade, Fernando Martins do Altis. Eu aturo uma barragem de
críticas, divertindo-me a dizer que apenas representava a ANITHAP.
No final da reunião, um dos participantes pretende fazer
votar critica à AHETA por ter estado na base da alteração legislativa. Ignorava
que Fernando Martins me tinha em muito boa consideração. Apenas diz, “A reunião
está encerrada”.
9.O processo de preparação de um novo decreto-lei da
hotelaria decore ‘à la portugaise’. O ministro Augusto Mateus apoia-nos, mas o
secretário de Estado Jaime Andrez está enleado nos interesses de Lisboa, creio
que sem se disso estar consciente.
‘interesses de Lisboa’ quer dizer hotelaria, a DGT de
Cristiano de Freitas, o PS de Asdrúbal Calisto e de Helena Torres Marques,
entre outros.
AM organiza reunião de empresários e gestores em Lisboa.
Pessoa amiga do gabinete pede-me para eu ‘controlar’ a reunião. Sou o primeiro
a intervir e não deixo grande margem a Stefano Saviotti, que lidera a posição
da hotelaria.
Está em causa uma diferença ainda hoje não resolvida
-de um lado a ‘hotelaria’ representada pela AHP de que SS é
lidimo defensor,
-de outro lado a dupla dinâmica hoteleira e imobiliária
turística da oferta do Algarve… basta pensar e Quinta do Lago, Vale do Lobo e
Vilamoura.
Acontece que a alteração legislativa é conduzida pelo
secretário de Estado Jaime Andrez. Há uma reunião de dez horas sobre a
hotelaria e, no fim… não há tempo nem energia para o Algarve.
Dias depois, o gabinete de AM pede-me para rever o texto que
ia a Conselho de Ministros. De supetão passo três horas a redigir as alterações
possíveis, o que me dá a enxaqueca do nonsense… que surge cada vez que enfrento
uma proposta sem sentido.
Vou dormir e não revejo o texto. A Ilda datilografa e envia…
há um erro de dactilografia que integra o texto final.
No meio da confusão, o gabinete de JA introduz uma pequena
alteração que ainda desvirtua mais o texto.
Talvez um dia conte como foi.
10.Por esta altura, a AHETA intervém na eleição da Comissão
Regional de Turismo, propondo-se pôr fim a longos anos de apagada e vil
tristeza. Hélder Pires é presidente e eu vogal.
AM vem à tomada de posse e manifesta apoio ao trabalho da
AHETA e RTA.
Depois da CTP, a AHETA tinha voz liderante na RTA.
Não vai durar.
11.Augusto do Mateus sai do governo, substituído por Pina
Moura que escolhe o algarvio Vítor Neto para secretário de Estado.
VN inicia um esforço metódico e enérgico, qualidades que são
suas, para minar o protagonismo da AHETA e, na passada, o do escriba destas
linhas.
Conhecemo-nos do meu sexto ano em Faro, do IST, do PCP e do
exilio. Nada faria prever que VN me tomasse de ponta e fizesse tudo para
isolar.
É a vida.
12.A primeira reunião do SET com a RTA é de choque frontal,
numa animosidade que já se manifestava.
Encontro Pina Moura em Alcácer e digo-lhe ‘tens de vir ao
Algarve ou há problemas sérios’, a que responde ‘não entendo, para mim corre
tudo bem’. A reunião acaba por ter lugar em Monte Gordo, mas não vai ao
essencial.
A RTA propõe-se organizar um programa Milénio 2000, os
problemas com VN agravam-se e apresentamos a demissão à Comissão Regional (com
os 16 presidentes de câmara) que recusa e apoia-nos.
Apresentamos novo pedido de demissão, explicamos aos
presidentes que a situação é insustentável e a Comissão Regional aceita.
13.Na RTA, VN apoia Paulo Neves para presidente, no
pressuposto de PN ser de alguma fidelidade.
Erro crasso, PN é independente e próximo do sólido José
Apolinário. VN tem colaboração, mas não servilismo.
Num dos seus piores tipos de intervenção, VN telefona a um
empresário para este não pôr PN na mesa de honra, mas a resposta é calma ‘nós
apenas servimos o jantar, quem convida é a RTA. não vejo como afastar o seu
presidente’.
É puro bullying politico.
14.Entretanto, o governo organiza uma reunião de prestígio
com empresários do Algarve. Redijo um caderno reivindicativo que EV, qual
delegado sindical, distribui à entrada… até que VN se opõe.
Ninguém da AHETA é suposto falar, mas Carlos Costa (chefe de
gabinete de VN acorda comigo que eu falava, mas não exagerar). Assim foi.
Lembro que me defini como o titular de mais cargos associativos não remunerados
– Vice-presidente da ANITHAP, AHETA, RTA e CTP.
Carlos Costa e eu ficámos amigos a sério… o melhor que o
consulado de VN me deu.
15.Segue um período de paz podre, interrompido por um
comunicado da AHETA que redijo em Aveiro, onde estava no Congresso da AHP.
Era forte, mas não ofensivo, e EV pouco o altera.
As comunicações ainda não eram o que sou hoje e, entre
congresso e regresso ao Algarve, ignoro a violenta reção de VN em publico.
O secretário de Estado ficava irritado por enviarmos copia
dos documentos para o gabinete do PM, mas continuámos a evitar.
O ministro convoca reunião com Comissão Executiva da AHETA. A
seu lado está VN, com ar do puto que apanha pancada e pede apoio ao irmão mais
velho.
EV tenta desdramatizar a situação (‘reconheço que não foi o
comunicado mais adequado da AHETA), mas não evita um raspanete do ministro e o
apelo (ordem?) para respeitarmos o secretário de Estado.
A Comissão Executiva, formada por representantes das mais
importantes empresas do Algarve, come e cala.
Neste dia acaba a independência da AHETA e demito-me da
Comissão Executiva, onde já não nada me motivava. Não tenho feitio para ser
dócil a um secretário de Estado
15.Aproxima-se a Grande Finale, que não foi gloriosa nem
momento feliz do presidente da AHETA.
A AHETA organiza um grande jantar de recolha de fundos para
a nova sede e reconhecimento dos que a criaram.
Sou VP da CTP e um dos criadores da AHETA, mas sou
despachado para uma mesa secundária. EV distribui medalhas a quem ‘fez’ a
AHETA, mas eu não recebo nem medalha nem diploma.
A pressão do secretário de Estado é evidente. EV cometeu o
erro de não me informar. Nesse dia, a amizade com EV apanha um rombo e nunca
mais será como antes.
16.Dou provas de estar acima disso e apoio a AHETA para além
do que seria normal:
-entre 2000/2007 represento a AHETA na Revisão do PROTAL,
tarefa insana, a que me dedico, de novo em estreita colaboração com EV, mas que
custa centenas de horas de trabalho a ‘descasar’ relatórios e a elaborar
contrapropostas.
-convenço Jack Petchey, mais tarde sir Jack Petchey, a
contribuir com 25.000 contos (nominalmente €125.000) para a nova sede da AHETA,
quando as maiores comparticipações eram de €25.000.
Alguém que conhecia muito bem JP diz-me ‘só você conseguia
convencer o JP a fazer esta doação’.
17.Sobre a ‘lei hoteleira’, dois pontos.
Anos mais tarde, encontro Augusto Mateus a quem digo ‘grato
pelo que fez, mas… caramba foi muito pouco’. Ao que me responde ‘não imagina,
no Conselho de Ministros, quando eu falava do Algarve… havia logo reparos a não
sermos identificados com a imobiliária turística’.
Voltaremos a este ponto.
Sou diretor geral da CTP e acompanho a revisão da ‘lei
hoteleira’ de AM na primavera/verão de 2007. EV e uma associação do Norte
pedem-me para eu veicular as suas posições. ‘Lisboa’ identifica-me com o
Algarve, o que é um erro.
Dito isto, sou afastado do processo e já não participo na reunião
de setembro no Turismo de Portugal. Pouco depois, encontro a arquiteta Fernanda
Vara, vogal do TdP que me diz ‘a sua ausência foia intervenção mais importante
da reunião’.
A sinergia/concorrência entre a hotelaria e a cadeia de
valor gerada pela procura de investimento em residência secundária será tida em
conta de maneira sui generis, mas eu não estarei lá.
18.Aceito correções e sugestões para melhorar o presente
texto.
Como é a minha memória, falo muitas vezes em mim.
Desempenhei na AHETA um papel que talvez José Carlos Leandro
seja o único a conhecer.
Tive o protagonismo que tive e não esqueço as invejas que
suscitei. Inveja do protagonismo, mas não das centenas de horas de trabalho que
o sustentam.
Dito isto, fui um dos gloriosos que animaram uma associação
empresaria regional genuína e independente do poder político.
Lisboa 26 de abril de 2024
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