Privatização da ANA (3) – Primeiros Factos Oficiais


O Decreto-Lei n.º 232/2012, de 29 de Outubro “Aprova o processo de privatização da ANA - Aeroportos de Portugal, S. A.” (Link). É um diploma importante, mas insuficiente.

É importante, porque parece regular todo o processo de privatização: o articulado apenas menciona “resoluções do Conselho de Ministros que venham a estabelecer as condições finais e concretas das operações necessárias à sua execução”.

É insuficiente, porque, entre outras razões, não vemos como o Governo

-possa aprovar o Contrato de Concessão entre o Estado e a ANA privatizada, sem aprovar um Decreto-Lei sobre as Bases desse Contrato,

-não defina, por Decreto-Lei, as modalidades futuras da Regulação que a ANA deve respeitar e o quadro de intervenção da Autoridade da Concorrência.

Antes de analisar o Decreto-Lei, descrevemos a herança de governos anteriores

 

1.Herança de Governos Anteriores

*Ausência de Definição Política e da Transparência do Contrato de Concessão

A Aviação Civil, a exemplo do que acontece em outros sectores de actividade económica do País, não assenta num acordo político nacional, capaz de estruturar o que há de aleatório na política partidária e consequente instabilidade governativa. Este facto explica que, no caso da ANA, SA, não haja um entendimento das funções que a empresa desempenha para

-assegurar a competitividade do Turismo e do Comércio Externo no que esta depende da gestão dos aeroportos,

-a partir desta competitividade, Turismo e Comércio Externo permitirem a dinamização das mais diversas actividades económicas, sociais e culturais.

A privatização da ANA seria hoje mais transparente e eficiente se, a quando da entrega da gestão aeroportuária a uma empresa (a ANA, EP de1979 e a ANA, SA de 1998), o Governo tivesse sido capaz de

-definir um conjunto coerente e simples de Orientações Estratégicas para a Empresa, no âmbito de todo o sector da Aviação Civil,

-formalizar um Contrato de Concessão entre o Estado concedente e a Empresa concessionária.

Na ausência destas duas definições, entramos num processo de privatização sem ter a consciência

-da substância económica, social, politica e cultural da gestão pela ANA dos Aeroportos de Portugal (Link),

-da realidade da gestão de aeroportos, só possível de conhecer por via da transparência de um bom Contrato de Concessão entre Estado e Empresa.

*Aspectos da ANA da Actualidade e da sua Envolvente

Em 2011, a ANA tem um resultado líquido positivo de cerca de € 200 milhões e uns EBIDTA que fazem o Ministro das Finanças sonhar com o encaixe da sua venda e deste o primeiro Objectivo Politico a atingir com a privatização. Antes de analisarmos esta política, vejamos algumas das suas origens.

Não podemos ignorar um longo período de «o Estado a negociar com o Estado» e um Estado muito diferente do que o Mundo de 2012 nos exige:

-ANA, SA, criada em 1998, assume privilégios da ANA, EP, criada em 1979,

-em 1979 e 1998, há definições legais gerais sobre domínio público e serviço aeroportuários, mais o exercício de poderes do Estado, cuja actualidade exige cuidadoso exame económico, financeiro e legal – uma ANA privada não pode ter os mesmos direitos de uma ANA pública, criada e recriada no referido ambiente de «o Estado a negociar com o Estado»

-as «empresas do Estado» fixam tarifas e níveis de serviço segundo um sistema de “regulação” muito rudimentar,

-a Regulação Económica e da Qualidade de Serviço definida em 2009 não chega a ser aplicada,

-a já mencionada ausência de um Contrato de Concessão que formalize a relação entre Estado e ANA, seja ela EP ou SA.

Estes factos só são possíveis pela natureza da envolvente em que se formam e actuam os elementos do Sistema Politico, Administrativo e Empresarial da Aviação Civil e das relações entre eles. Voltaremos a este Sistema, no qual se integrarão a TAP e ANA privatizadas e no âmbito do qual devemos analisar e avaliar a sua actividade futura.

*Privatização da ANA, SA – O Ímpeto Político de 2005

Vimos como a privatização da ANA, SA, é decidida antes da sua criação, no âmbito de um processo, todo ele concebido em função do financiamento do Novo Aeroporto de Lisboa (Link). Neste processo, destacamos o Ímpeto Político de 2005, no qual há quatro passos da Formalização do Processo de Privatização

-2007: definição do enquadramento politico da privatização – consideramos este enquadramento insuficiente, mas é muito mais vasto e ambicioso do que a da privatização de 2012, dominada pelo “encaixe”,

-2009: Decreto-lei sobre a Regulação Económica e da Qualidade de Serviço,

-2010: Decreto-Lei que define as Bases do Contrato de Concessão

-2010: Resolução do Conselho de Ministros que define a Minuta do Contrato de Concessão. 

*Espaço Para Oposição Política (2010)

Nesta Formalização da Privatização da ANA, SA, há espaço para a oposição politica se manifestar – esta é uma lição que a actual coligação deve reter.

Em 14 de Abril de 2010, no dia da Publicação do Decreto-Lei que aprova as Bases do Contrato de Concessão, deputados do PSD pedem a Apreciação Parlamentar 36/XI ao Decreto-Lei n.º 34/2010, de 15 de Abril (Link).

O Debate sobre a Apreciação Parlamentar ilustra políticas partidárias instáveis e incoerentes, ditadas pela oportunidade do momento. O PSD critica duramente a Privatização da ANA SA “em bloco”:

-“o modelo para o qual as Bases agora aprovadas apontam, ao definir uma privatização em bloco, vai no sentido de impedir a livre concorrência entre os aeroportos do País.”.

A intervenção termina com pedido firme: “o PSD proporá a revogação do presente diploma.”.

Em 2012, o PSD está convertido às virtudes da Privatização da ANA “em bloco”. Sejamos justos: durante o mesmo debate, o PS também dá prova de instabilidade e incoerência nas posições que defende.

Em 2010, a Formalização da Privatização e o espaço para a intervenção da Oposição dão uma base transparente ao processo de privatização da ANA.

*Regulação da Gestão de Aeroportos e Seu Regulador

O Decreto-Lei nº 217/2009, de 4 de Setembro “Define o modelo de regulação económica e da qualidade de serviço do sector aeroportuário nacional” e posiciona a privatização da ANA, SA ao nível das melhores práticas internacionais:

-a privatização é acompanhada de Regulação Económica, mas esta é alargada à Regulação da Qualidade de Serviço.

Na pior tradição nacional, apesar do Decreto-Lei entrar em vigor no dia seguinte ao da publicação, não temos notícia da sua aplicação, nem da definição do novo regime autónomo, nele previsto, para as funções de regulação económica atribuídas ao Instituto Nacional da Aviação Civil (INAC).

 

2.Propostas do Governo (2012/2013)

*Objectivos da Privatização da ANA, SA

Destacamos dois dos objectivos da Privatização da ANA, fixados pelo Governo:

-maximização do encaixe financeiro,

-reforço da posição competitiva, do crescimento e da eficiência da ANA, S. A., em benefício do sector da aviação civil portuguesa, da economia nacional e dos utilizadores e utentes das estruturas aeroportuárias geridas pela ANA.

Estes objectivos justificam duas observações:

-a ANA privada terá tendência a fixar as taxas e a qualidade de serviço de acordo com a “melhor remuneração possível” do capital investido para assegurar a “maximização do encaixe financeiro” pelo Governo – daí a importância da Regulação Económica e da Qualidade de Serviço supervisionada e/ou regulada por um INAC renovado e reforçado,

-na péssima tradição de Governos anteriores, o Governo não dá prioridade ao que a “competitividade, crescimento e eficiência da ANA” representa para o sucesso da Oferta de Turismo e da Exportações de Mercadorias – este devia ser o primeiro fim a realizar pela ANA privada e factor político condicionante de todo o processo de privatização.

*”um ambiente legal e regulatório adequado”

O Governo tem ainda em vista três “aspectos”. Dois destes “Aspectos” são irrelevantes, salvo saber como o Governo pretende assegurar as condições para o “aumento da capacidade aeroportuária na região de Lisboa”.

O outro “aspecto” consiste em “Definir um ambiente legal e regulatório adequado”. Este “aspecto” é a envolvente dos dois “objectivos” da privatização antes mencionados. O panorama é preocupante porque, entre outros, está em causa a indefinição sobre realidades da maior importância:

- fixação das Taxas sujeitas a Regulação Económica, fixação de parâmetros da Qualidade de Serviço, revisão do sistema de gestão de slots (em particular no Aeroporto de Lisboa),

-definição da Supervisão/Regulação pelo INAC e intervenção da Autoridade da Concorrência.

Analisamos estas e outras realidades em próximo post sobre a Privatização da ANA: “No airport privatization without regulation”.

*Concessão do Serviço Público Aeroportuário à ANA – Proposta do Governo, em 2012

O preâmbulo do Decreto-Lei de Outubro de 2012 refere as bases da Concessão, que foram estabelecidas pelo Decreto-Lei n.º 33/2010, de 14 de Abril – «o tal» que o PSD quis revogar. Ficamos sem saber se o Governo baseia a sua proposta neste Decreto-Lei, que foi elaborado em função do financiamento do Novo Aeroporto de Lisboa.

Em qualquer dos casos, o clausulado do Contrato de Concessão determina grande parte do valor da ANA para o adquirente e para o País. O panorama é preocupante:

-ao longo de mais de um ano de governação, o actual Governo não altera e aprova a Minuta do Contrato de Concessão, de 2010,

-chega a hora da privatização e não há uma ponderação calma e objectiva dos interesses nacionais a acautelar e um consenso sobre o contrato que os acautele,

-o Governo privatiza a empresa com base num Contrato de Concessão, ainda desconhecido e que não passou pelo teste da experiência da sua aplicação

Esta realidade não é brilhante, mas há pior. O preâmbulo do Decreto-Lei parece implicar que o Governo não segue a via democrática de aprovar novo Decreto-Lei a definir as Bases do Contrato de Concessão e nova minuta deste Contrato. Com efeito,

-o Governo opta por “uma operação de venda por negociação particular, a um ou mais investidores”,

- “no âmbito da qual se prevê a possibilidade de negociação dos termos e condições do contrato de concessão de serviço público aeroportuário com os referidos investidores”. 

O articulado confirma esta negociação.

Admitimos sermos um dos “completamente ignorantes” do País, mas não vemos como o interesse do País é acautelado com esta metodologia, susceptível de maximizar o encaixe, mas podendo ter consequências perversas sobre o que verdadeiramente conta para o País.

*”hub de Lisboa”, Concorrência e Regulação

O preâmbulo do actual Decreto-Lei de 2012 exige “respeitar a importância estratégica do chamado «hub de Lisboa»”. Disposição idêntica figura no caderno de encargos da privatização da TAP e no Programa do Governo. Esta opção política do Governo tem consequências a explicitar.

No Aeroporto de Lisboa, já há tensões entre as exigências da TAP e o crescimento do tráfego de companhias low cost, que são fundamentais para a Oferta de Turismo de toda a área de influência do Aeroporto. Este tipo de tensão deve ser dirimido com recurso

-à Autoridade da Concorrência, em termos a definir pela futura Regulação da Gestão dos Aeroportos de Portugal,

-a mecanismo regulador da Gestão de Slots e independente das partes envolvidas – o sistema em vigor deve ser alterado, em ligação com a Privatização da ANA (Link).

A operação do hub de Lisboa tem de ser assegurada, mas não pode dar azo a «abuso de direitos adquiridos» por parte da TAP, deve sair da esfera politica e exige regulação adequada, mais a possível intervenção da Autoridade da Concorrência.

*Aeroportos das Regiões Autónomas

O Governo «esquece» que o seu Programa prevê a “transferência dos aeroportos da Madeira e dos Açores para a respectiva tutela”. A ANA está a ser privatizada de acordo com as definições legais em vigor. Em 2009

-é definida legalmente a Rede Aeroportuária gerida pela ANA: os três grandes aeroportos do Continente (mais o chamado “aeroporto de Beja”, então na crista da onda politica) e os três aeroportos da Região Autónoma dos Açores, dependentes de “subsídios cruzados”, no seio da Rede,

-é omitido o caso dos Aeroportos da Região Autónoma da Madeira, concessionados à ANAM, SA, mas cujo Capital Social é Detido pela ANA (70%), Estado (20%) e Região (10%), havendo um aeroporto estruturalmente subsidiado (Porto Santo) e outro endividado em cercad de € 200 milhões (Santa Catarina),

-estes importantes “subsídios cruzados” entre aeroportos do Continente e das Regiões Autónomas fazem da ANA um instrumento da Politica de Coesão do País.

Esta realidade parece exigir que o Governo

-confirme ter ouvido os Governos Regionais e reveja o imbróglio legal de 1977/1979, na criação da ANA, EP,

-avalie e reveja a transparência sobre a maneira como a ANA privatizada assegura os confusos mecanismos que são sedimentados durante os anos de «o Estado a negociar com o Estado».

 

3.Tentemos Ser Práticos

*O Déficit das Contas Públicas em 2012

De repente e segundo a comunicação social, o Governo precisa que, ainda em 2012, a ANA, SA, “pague” ao Estado a formalização da Concessão, que data de 1998, ou, para ser preciso, de 1979.

Posteriormente, o adquirente da ANA, SA pagará um valor que será o valor de mercado. Para abate à Dívida Pública, o Estado encaixa este valor, menos a dívida contraída pela ANA para pagar ao Estado os preciosos € 600 milhões a reduzir ao deficit de 2012.

Esta manifestação de Criatividade nas Contas Públicas põe o Governo a negociar sob stress e condiciona o que está em causa: alienar, em 2013, as “participações sociais representativas do capital social da ANA”, de acordo com as exigências de competitividade do Turismo e Exportações.

*Valores Mínimos a Respeitar

1 – O Governo deve respeitar a formalização democrática da aprovação do Contrato de Concessão: Decreto-Lei a aprovar as Bases e Resolução do Conselho de Ministros a aprovar a Minuta. O processo deve ser público e transparente. Os Anexos ao Contrato de Concessão devem ser disponibilizados na Internet. Esta é garantia indispensável de uma boa defesa do Interesse Público.

Durante a negociação particular poderá haver alterações a este Contrato, mas elas serão claras, porque a sua publicidade a isso obriga.

2 – O Governo deve esclarecer a teia de relações existente entre os aeroportos do Continente e os das Regiões Autónomas, antes de a due dilligenge da empresa adquirente venha a levantar o problema,

3 – O Governo tem de informar os concorrentes que a ANA privatizada irá actuar num ambiente regulatório diferente do actual e que inclui

-um sistema de Supervisão/Regulação do Desenvolvimento e Gestão dos Aeroportos e um quadro institucional, que beneficiem das melhores práticas europeias, e das disposições existentes sobre Qualidade de Serviço,

-clarificar as áreas de intervenção da Entidade da Concorrência e a relação desta com o quadro institucional da Supervisão/Regulação da Economia e da Qualidade de Serviço.

4 – Mais concretamente, deve ficar claro no Contrato de Concessão que

-serão respeitadas as disposições legais de 209/2011 (do anterior Governo) sobre Regulação Económica e da Qualidade de Serviço,

-é alterado o actual regime de coordenação da atribuição de slots nos Aeroportos onde tal se justifique, com prioridade total ao da Portela

-o respeitar a importância estratégica do hub de Lisboa, não exclui, antes pelo contrário, justifica a intervenção da Regulação da gestão dos Aeroportos e da Autoridade da Concorrência,

-são aplicadas as Recomendações da OACI (Organização da Aviação Civil Internacional ou ICAO) sobre Transparência na gestão aeroportuária, com destaque para a Exploração da Rede Aeroportuária, com subsídios cruzados entre Aeroportos e mecanismo de single till.

*Estamos a Exagerar?

Não estamos a exagerar. O leitor cidadão deve considerar o seguinte:

-até á privatização da TAP e ANA, todos os elementos do Sistema Politico, Administrativo e Empresarial da Aviação Civil e as relações entre eles, funcionam em ambiente pouco transparente e com «o Estado a negociar com o Estado», com destaque para a raquítica Regulação assegurada pelo actual raquítico INAC,

-com a TAP e ANA privatizadas, há uma transformação radical deste sistema e o que NÃO PODE ACONTECER AO PAÍS é a captura, pela TAP e ANA privadas, das actuais relações entre os elementos do Sistema.

A homeostasia do Sistema é muito forte e a captura dos elementos e relações mais importantes será um acto corrente e de boa gestão pelas empresas privadas. Esta captura criará problemas ao interesse nacional se não for equilibrada pelo Contrato de Concessão, intervenção da Autoridade da Concorrência e uma Regulação em vários domínios, para além da Económica e da Qualidade de Serviço – este é o tema do próximo post.  

 

A Bem da Nação

Albufeira 5 de Novembro de 2012

Sérgio Palma Brito

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